terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Vestígios da Natureza de Félix Adugoenau

VESTÍGIOS DA NATUREZA DE FÉLIX ADUGOENAU
Quando os homens não conseguem entender a dimensão de sua identidade e natureza, não podem mensurar a importância de sua existência relacionada ao cosmos e então começa o sentimento de posse de quase tudo ao seu alcance, e, posse do próprio ser humano. Isto é uma orientação conforme a filosofia do povo Bororo.
Sou conhecido no mundo de trânsito não indígena como Félix Rondon. Mas, tenho uma identidade originária milenar com o nome de Adugoenau, é como sou reconhecido no mundo originário bororo. O vocativo “ime” (homens) é ouvido nos momentos mesmo de tristezas e de dores, onde quer que eu vá, para ser enunciado o nome originário Adugoenau. O vocativo “ime” faz-me recordar de que os direitos individuais não devem se sobrepor sobre os direitos coletivos enquanto Povo Bororo, enquanto metade exogâmica “Ecerae”, enquanto clã “Badojeba” (Construtor de Aldeia), enquanto subclã Badojeba Cebegiwu (Construtor de Aldeia de Baixo), enquanto subclã originário Badojeba do chefe Bakoro Kudu, segundo dois anciões da Aldeia Córrego Grande, em pesquisa de mestrado pela Universidade Federal de Mato Grosso. Prezo os direitos coletivos em sobrevivência enquanto povo político, sócio economicamente diferente, diante da vulnerabilidade existente acerca de nós.
Fui educado desde menino para ser um líder, não um cacique, não um chefe com poderes de julgar, condenar e punir. Para isso, nunca me disseram que a minha educação direcionava-me para ser um líder, até os meus 24 anos de idade. Mas fui orientado desde muito cedo que tenho responsabilidades sobres os meus “irmãos bororos”, a ter compaixão dos outros, a dividir o pouco de comida que a mim era dado, a alimentar-me por último depois de todos terem se servido, a ter a atenção dos meus pais por último, a ser vestido por último (meus irmãos eram vestidos primeiramente, antes de mim), a contentar com a porção menor de uma comida, a cuidar de meus irmãos, quase que um vigia particular de meus irmãos menores, fui educado a ter presença de espírito em momentos muito críticos de desespero, de dor e de tristeza, a sofrer resignadamente em favor de um coletivo e em favor de meus irmãos consanguíneos na terna idade, para depois de um tempo meus irmãos consanguíneos tornarem-se os próprios bororos, agora sim, irmãos enquanto povo.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Fui ensinado que tenho que morrer pelos outros, porque isso é cuidar dos outros que mais necessitam mais que eu e dos outros que “tem” menos que eu. Tudo isso porque quem é do clã “Badojeba” é quem protege e vigia a todos os outros da aldeia (conforme orientação de um ancião bororo já falecido, pai de Bruno Tavie – aldeia Córrego Grande), principalmente porque venho de um subclã de alto prestígio e que quase desapareceu fisicamente. Fui ensinado que todas as coisas ruins devem acontecer primeiramente comigo para depois, se continuar, acontecer com meus companheiros de etnia. As coisas boas adquiridas e conseguidas por mim, não são para mim, são para meus companheiros, são para minhas “irmãs” e meus “irmãos”. Assim como todas as coisas boas devem acontecer comigo por último, enquanto vejo meus “irmãos” se regojizando, que este é o meu prêmio, ver meus irmãos felizes e em paz, sem riscos de ameaças, sem riscos à sua integridade física. A missão é proteger e cuidar dos outros. É ficar na retaguarda de um “irmão”. É “velar” duramente o silêncio da noite. É ser o último a descansar. É ser o primeiro a levantar. E há muito tempo atrás perguntei solitariamente e em silêncio porque eu devo cuidar daqueles que tinham mais idade que eu e que tem corpos maiores que o meu pequeno corpo. Desde muito cedo aprendi a gostar do pesado silêncio e valorizá-lo. Com o tempo fui entendendo o porque de tudo isso. Agora compreendo muitos ensinamentos de meus avós, repassados desde muito jovem. Hoje, para consolar a mim próprio, olho no “vazio” distante infinito, e, recordo que muitas vezes, quando pequenos, olhamos em silêncio para o infinito distante quando estávamos no cume do morro Meruri. Olhamos para o horizonte distante para compreendermos e sentirmos que a tristeza que nos assola é muito pequena diante do infinito silencioso, do horizonte distante. E quantas vezes quanto pudemos, fizemos isso. Em 2015, uma anciã bororo “mãe de alma” (mãe de Daniel Koriga – aldeia Córrego Grande) disse-me em língua bororo: “Awi kaba kuri dje, awiwo kawo kuri dje. Aetu amedagei. Aetuwo cei. Akaiwodo cei. Boe rugadu djire inagoino, boe pegareu kuricigore.” (Não morras logo, tens que custar a morrer. Cuida dos outros. Para cuidares de nós. Olha por nós. É verdade que lhes digo, há muitas coisas ruins). A estas palavras desta anciã mãe de almas, algumas lágrimas desceram de meus olhos.
Já disseram que tenho preconceito contra mulheres. Isto é não é verdade. Descendo de um povo cuja organização social é capaz de reconhecer a mulher na condição de ser a única entidade capaz de fazer conexão com duas dimensões de existência ao gerar dentro do seu próprio ser outro ser e trazê-lo para a esteira social bororo. Na minha dissertação de mestrado trago um capítulo sobre esta maravilhosa entidade, dentro dos saberes e fazeres autóctones do povo Bororo. Defendo que temos que preparar melhor a mulher bororo e a mulher indígena para a vivência com o mundo ao entorno, sem estas perderem a sua dignidade de pessoa humana.
Enquanto servidor na SEDUC, já cheguei a contrair uma dívida no valor de R$ 21.000,00 (vinte e um mil reais) em empréstimos, na tentativa de ajudar aqueles que precisavam. Hoje estou ainda com uma dívida de R$ 12.000,00 conforme o último extrato bancário de outubro de 2015. Tudo isso para ajudar aqueles precisavam. Não usufrui de nada deste dinheiro. Mas não me arrependo deste empréstimo que fiz. Pelo contrário, sou muito feliz. Pelo menos estou em paz comigo mesmo de ter feito o que estava ao meu alcance.
Bororo e Xavante são inimigos tradicionais, mas, já ajudei mesmo pessoas do povo Xavante com hospedagem e alimentação por minha conta própria, assim como pessoas de outros povos indígenas. Já fiz inúmeras viagens de trabalho pela SEDUC, sem diárias com o intuito de ajudar os povos indígenas em suas demandas com gastos com hospedagem e alimentação. Isto é aqui não é uma reclamação, mas uma situação de exposição do que Félix Adugoenau se transformou. Uma pessoa preocupada não somente com seu povo, mas com todos os povos indígenas que vieram até ele. Fiz isso não por achar-me melhor que outros, mas fiz isto porque sou assim, é a minha natureza.
Carrego em meu nome o nome de um ser mau e cruel, o espírito felino, Jaguar. “Ai” no nome Adugoenau. Mitos antiquíssimos bororo apontam que este felino não é o atual jaguar, mas o ancestral do tigre. Atualmente “Adugo” tem referência ao atual Jaguar, a onça pintada. Carrego este nome, não por adoração ao ente jaguar, mas, uma contraposição a este espírito que traz a ideia de se procurar desafiá-lo e estar em paz com o mundo dos ancestrais num equilíbrio constante. Sou diferente não por acaso, mas tornei-me diferente ao vir para a esteira social do povo Bororo. Muitas pessoas indígenas e não indígenas julgaram-me conforme seus valores, mas não conseguiram sequer acessar a superfície de meu ser. Mas o ser humano continua querendo fazer inferências de coisas que estão fora do seu alcance de explicação e do seu entendimento no “achismo” de algo magnânimo, como uma pessoa que é um mistério profundo de encantos e “desencantos”.
Falo de um modo de vivência em coletivo, assim como minha educação tornou-me, um ser preocupado com o coletivo do meu povo, e, depois de minha inserção na função de professor, preocupado também com o coletivo dos povos indígenas. Apesar de viver em Cuiabá, visito periodicamente as comunidades de meu povo que apesar das atribulações, procuram ainda viver com dignidade. Falo a língua do meu povo, converso com os indivíduos do meu povo no idioma ancestral. Participo dos rituais de meu povo, entre eles o principal deles, o funeral, e quando as pessoas entram em luto, também entro, se for da parte da metade exogâmica de onde venho, passando a não comer nada. Os colegas de SEDUC/Coordenadoria de Educação Escolar Indígena sabem muito bem do que estou falando, porque eles são a prova disso. E também para sempre lembrar-me que muitos do meu povo necessitam muito mais que eu, durmo em pleno chão frio, sem lençol, sem cobertor, diretamente sobre a cerâmica do piso. Em casa não durmo em cama.

Acredito imensamente nos espíritos bororo “Bakororo” e “Itubore” e na força dos rituais funerários bororo, no tríduo final do funeral bororo que faz-nos conforme a orientação filosófica bororo a repensar na existência nesta dimensão de existência e na procura sem fim do aperfeiçoamento. É por isso que digo aos meus filhos: “Quando eu morrer, não chorem de tristezas. Chorem de saudades das coisas boas que vivemos juntos”. A morte é apenas uma passagem para o aperfeiçoamento. Somos viajantes nesta dimensão de existência e esteira social onde entramos para a história e saímos dela.